Inspirada em uma
das aulas do Professor João Trindade sobre o Direito de Igualdade e na
discussão que realizamos em sala sobre
Cotas para Negros no Serviço Público, resolvi escrever um pouquinho
sobre o assunto e compartilhar algumas reflexões que nossa turma de Direito
Legislativo realizou no último semestre de 2015.
Em primeiro
lugar, devo dizer que serei parcial. Sim, porque sou a favor da adoção de cotas
em concurso, em vestibular, no ENEM e até o fim do mundo, enquanto a sociedade
brasileira excluir da criança negra o direito de sonhar com um futuro decente,
em que possa escolher o caminho profissional e pessoal que quer seguir e não
ser escolhida por um destino quase certo de pobreza, criminalidade e morte
precoce.
Negar a existência
do racismo no Brasil e de sua consequente segregação é perverso. Há um abismo
gigantesco que separa negros e brancos. Ainda que juremos de pés juntos que
somos pluralistas e não discriminamos ninguém por raça, credo ou gênero, a taxa
de analfabetismo entre negros é o dobro da taxa entre brancos, por exemplo.
De cada dez
famílias que recebem o Bolsa Família, sete são chefiadas por homens ou mulheres
negros. A taxa de desemprego também é maior entre negros, especialmente entre
as mulheres. Negros também recebem salários inferiores, em media 40% a menos,
de acordo com dados do IBGE / 2010.
Além disso, o
IPEA, em Nota Técnica de 2013, que pode ser analisada em link disponiblizado ao
final deste artigo, afirma que “segundo informações do
Sistema de informações sobre Mortalidade (SIM/MS) e do Censo Demográfico do
IBGE, de 2010, enquanto a taxa de homicídios de negros no Brasil é de 36 mortes
por 100 mil negros, a mesma medida para os não negros é de 15,2”. A taxa chega a 76 mortes em estados onde a
marginalização do negro é ainda mais acentuada, a exemplo de Alagoas.
Os dados acima são apenas breves ilustrações da
segregação racial existente em nosso País. Podem ser confirmados muito antes de
qualquer pesquisa, se observarmos em meios como a universidade, a mídia, a
política ou a Administração Pública a desproporcionalidade da presença de
negros ocupando esses espaços.
Gostaria de trazer um pouco da minha realidade, para
personificar um pouco mais a discussão. Quando ingressei na Universidade de
Brasília, um semestre antes da adoção de cotas para negros, a Faculdade de
Educação era quase exclusivamente branca. Os poucos negros que ali se
encontravam eram estrangeiros. Isso em uma área que no Brasil é marginalizada.
Fico me questionando como seria em outros cursos, como Medicina, Engenharia ou
Direito.
Além do mais, passei em diversos concursos públicos e
em todas as ocasiões que tomei posse e fiz curso de formação com os demais
colegas aprovados não contabilizei nos dedos de uma mão a quantidade de negros
que ingressaram comigo.
Hoje, em meu atual emprego, continuo contando nos
dedos das mãos a quantidade de colegas negros. Nem vou mencionar quantos deles
ocupam papel de liderança. Se estivermos falando de mulheres negras então, a coisa
piora um pouco.
É importante ter
em mente que não existe igualdade quando parte significativa da população não
possui o mínimo necessário para sobreviver com dignidade. A Constituição Federal, em seu artigo 3°, determina
como objetivo fundamental do Estado estimular a redução das desigualdades
sociais, além de promover o bem de TODOS, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Portanto,
pode-se concluir que reduzir as injustiças sociais é um imperativo constitucional.
Para isso,
obviamente precisamos de mudanças estruturais, especialmente na EDUCAÇÃO, o que
não reduz a necessidade de implementação de políticas públicas que visem reduzir
já a curto prazo a marginalização praticada pela sociedade contra determinados
grupos. Dessa forma, cabe ao Estado
enquanto fomentador da redução da desigualdade
elaborar ações afirmativas para incluir minorias.
Mas o que são políticas afirmativas? De acordo com
o site do Ministério da Educação - MEC, políticas afirmativas são “o conjunto de medidas especiais voltadas a
grupos discriminados e vitimados pela exclusão social ocorridos no passado ou
no presente, com o objetivo de eliminar as desigualdades e segregações, de
forma que não se mantenham grupos elitizados e grupos marginalizados na
sociedade”.
Um trecho da
conceituação oferecida pelo MEC me chama a atenção em especial: “de forma que não se mantenham grupos
elitizados e grupos marginalizados”. Acredito que boa parte das pessoas que
são desfavoráveis a ações afirmativas ou a programas como o Bolsa Família, por
exemplo, sentem-se ameaçadas com possíveis transformações na sociedade. Usam
todo tipo de argumento, tal qual a falta de mérito do cotista, por exemplo, em
uma tentativa desesperada de manter o status
quo e garantir que o preto e o pobre vão permanecer em seu devido lugar na
sociedade: às margens.
É o que parece
acontecer com o desabafo de uma estudante branca que não conseguiu uma vaga na
universidade pública, ao relatar no facebook: “to aqui pra desabafar. Para o
curso de Letras na UFMG são 260 vagas. Fiquei na posição 239 e não vou entrar,
porque? Por causa dessa %$#@& DE
COTA. Vai todo mundo ¨%$*@. DESGRAÇA” .
A indignação e o ódio
demonstrado pela estudante infelizmente não são incomuns quando se trata do
assunto. E obviamente o motivo é identificável a quilômetros: se um negro ocupa
uma vaga na universidade ou no serviço público, algum branco vai ficar de fora.
E praticamente todas as vagas sempre pertenceram aos grupos elitizados. É mais
confortável que as coisas permaneçam como sempre estiveram para aqueles que
gozam de privilégios.
A questão da
meritocracia é o argumento mais utilizado quando se trata de desqualificar o
aluno cotista e mais recentemente o servidor cotista. A essa altura do debate,
a igualdade e a isonomia são alardeadas e ninguém se lembra de que igualdade é
tratar os iguais de maneira igual e os desiguais de forma desigual. Ou seria
possível dizer que um aluno que desde a Educação Infantil é hostilizado na
escola e é empurrado para fora do sistema de ensino tem as mesmas condições de
competição? Aos que acreditam que a escola é a mesma para brancos ou negros,
recomendo o livro de Eliane Cavalleiro, em que a autora revela horrores
sofridos por crianças negras na pré-escola.
Ainda sobre igualdade
de competição, não é preciso muito para se constatar que enquanto a elite
frequenta colégios que a prepara para o vestibular desde a Educação Básica (esquecendo-se
muitas vezes de outras dimensões da educação, a exemplo da cidadania) os alunos
mais pobres enfrentam problemas que passam desde a precariedade da alimentação,
do material didático, à falta de professores, superlotação das sala de aula,
violência dentro e fora da escola e mais uma lista de exemplos que tomariam
mais alguns parágrafos deste texto.
Nesse cenário, brancos e negros pobres estão em condições muito aquém de uma competição ombro a ombro com quem tem comida gostosa todo dia, casa boa para morar, espaço para estudar, professores capacitados, livros à mão e perspectivas de sucesso profissional e intelectual quase inexistentes na vida daqueles que estão marginalizados. É quase proibido sonhar quando você cresce em um meio que todos os caminhos apontam para marginalização ou no máximo subempregos. A ordem é sobreviver. Isso de ocupar uma vaga numa universidade pública, passar em um concurso público é praticamente uma utopia. Se você for negro e pobre então, as coisas ficam um pouquinho mais complicadas. Os brancos, por algum motivo misterioso, ainda têm mais oportunidades de ascensão social no Brasil. Não deve ter nenhuma relação com o racismo. Pelo menos, para quem acredita que o racismo não existe em nosso país.
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