terça-feira, 29 de março de 2016

COTAS EM CONCURSO PÚBLICO


Inspirada em uma das aulas do Professor João Trindade sobre o Direito de Igualdade e na discussão que realizamos em sala sobre  Cotas para Negros no Serviço Público, resolvi escrever um pouquinho sobre o assunto e compartilhar algumas reflexões que nossa turma de Direito Legislativo realizou no último semestre de 2015.

Em primeiro lugar, devo dizer que serei parcial. Sim, porque sou a favor da adoção de cotas em concurso, em vestibular, no ENEM e até o fim do mundo, enquanto a sociedade brasileira excluir da criança negra o direito de sonhar com um futuro decente, em que possa escolher o caminho profissional e pessoal que quer seguir e não ser escolhida por um destino quase certo de pobreza, criminalidade e morte precoce.

Negar a existência do racismo no Brasil e de sua consequente segregação é perverso. Há um abismo gigantesco que separa negros e brancos. Ainda que juremos de pés juntos que somos pluralistas e não discriminamos ninguém por raça, credo ou gênero, a taxa de analfabetismo entre negros é o dobro da taxa entre brancos, por exemplo.

De cada dez famílias que recebem o Bolsa Família, sete são chefiadas por homens ou mulheres negros. A taxa de desemprego também é maior entre negros, especialmente entre as mulheres. Negros também recebem salários inferiores, em media 40% a menos, de acordo com dados do IBGE / 2010.

Além disso, o IPEA, em Nota Técnica de 2013, que pode ser analisada em link disponiblizado ao final deste artigo, afirma que “segundo informações do Sistema de informações sobre Mortalidade (SIM/MS) e do Censo Demográfico do IBGE, de 2010, enquanto a taxa de homicídios de negros no Brasil é de 36 mortes por 100 mil negros, a mesma medida para os não negros é de 15,2”.  A taxa chega a 76 mortes em estados onde a marginalização do negro é ainda mais acentuada, a exemplo de Alagoas.

Os dados acima são apenas breves ilustrações da segregação racial existente em nosso País. Podem ser confirmados muito antes de qualquer pesquisa, se observarmos em meios como a universidade, a mídia, a política ou a Administração Pública a desproporcionalidade da presença de negros ocupando esses espaços.

Gostaria de trazer um pouco da minha realidade, para personificar um pouco mais a discussão. Quando ingressei na Universidade de Brasília, um semestre antes da adoção de cotas para negros, a Faculdade de Educação era quase exclusivamente branca. Os poucos negros que ali se encontravam eram estrangeiros. Isso em uma área que no Brasil é marginalizada. Fico me questionando como seria em outros cursos, como Medicina, Engenharia ou Direito.

Além do mais, passei em diversos concursos públicos e em todas as ocasiões que tomei posse e fiz curso de formação com os demais colegas aprovados não contabilizei nos dedos de uma mão a quantidade de negros que ingressaram comigo.

Hoje, em meu atual emprego, continuo contando nos dedos das mãos a quantidade de colegas negros. Nem vou mencionar quantos deles ocupam papel de liderança. Se estivermos falando de mulheres negras então, a coisa piora um pouco.  

É importante ter em mente que não existe igualdade quando parte significativa da população não possui o mínimo necessário para sobreviver com dignidade.  A Constituição Federal, em seu artigo 3°,   determina como objetivo fundamental do Estado estimular a redução das desigualdades sociais, além de promover o bem de TODOS, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Portanto, pode-se concluir que reduzir as injustiças sociais é um imperativo constitucional.  

Para isso, obviamente precisamos de mudanças estruturais, especialmente na EDUCAÇÃO, o que não reduz a necessidade de implementação de políticas públicas que visem reduzir já a curto prazo a marginalização praticada pela sociedade contra determinados grupos.  Dessa forma, cabe ao Estado enquanto fomentador da redução da desigualdade  elaborar ações afirmativas para incluir minorias.  

Mas  o que são políticas afirmativas? De acordo com o site do Ministério da Educação - MEC, políticas afirmativas são “o conjunto de medidas especiais voltadas a grupos discriminados e vitimados pela exclusão social ocorridos no passado ou no presente, com o objetivo de eliminar as desigualdades e segregações, de forma que não se mantenham grupos elitizados e grupos marginalizados na sociedade”.

Um trecho da conceituação oferecida pelo MEC me chama a atenção em especial:  de forma que não se mantenham grupos elitizados e grupos marginalizados”. Acredito que boa parte das pessoas que são desfavoráveis a ações afirmativas ou a programas como o Bolsa Família, por exemplo, sentem-se ameaçadas com possíveis transformações na sociedade. Usam todo tipo de argumento, tal qual a falta de mérito do cotista, por exemplo, em uma tentativa desesperada de manter o status quo e garantir que o preto e o pobre vão permanecer em seu devido lugar na sociedade: às margens. 

É o que parece acontecer com o desabafo de uma estudante branca que não conseguiu uma vaga na universidade pública, ao relatar no facebook: “to aqui pra desabafar. Para o curso de Letras na UFMG são 260 vagas. Fiquei na posição 239 e não vou entrar, porque? Por causa dessa %$#@&  DE COTA. Vai todo mundo ¨%$*@. DESGRAÇA” .

A indignação e o ódio demonstrado pela estudante infelizmente não são incomuns quando se trata do assunto. E obviamente o motivo é identificável a quilômetros: se um negro ocupa uma vaga na universidade ou no serviço público, algum branco vai ficar de fora. E praticamente todas as vagas sempre pertenceram aos grupos elitizados. É mais confortável que as coisas permaneçam como sempre estiveram para aqueles que gozam de privilégios.

A questão da meritocracia é o argumento mais utilizado quando se trata de desqualificar o aluno cotista e mais recentemente o servidor cotista. A essa altura do debate, a igualdade e a isonomia são alardeadas e ninguém se lembra de que igualdade é tratar os iguais de maneira igual e os desiguais de forma desigual. Ou seria possível dizer que um aluno que desde a Educação Infantil é hostilizado na escola e é empurrado para fora do sistema de ensino tem as mesmas condições de competição? Aos que acreditam que a escola é a mesma para brancos ou negros, recomendo o livro de Eliane Cavalleiro, em que a autora revela horrores sofridos por crianças negras na pré-escola.

Ainda sobre igualdade de competição, não é preciso muito para se constatar que enquanto a elite frequenta colégios que a prepara para o vestibular desde a Educação Básica (esquecendo-se muitas vezes de outras dimensões da educação, a exemplo da cidadania) os alunos mais pobres enfrentam problemas que passam desde a precariedade da alimentação, do material didático, à falta de professores, superlotação das sala de aula, violência dentro e fora da escola e mais uma lista de exemplos que tomariam mais alguns parágrafos deste texto.

             Nesse cenário, brancos e negros pobres estão em condições muito aquém de uma competição ombro a ombro com quem tem comida gostosa todo dia, casa boa para morar, espaço para estudar, professores capacitados, livros à mão e perspectivas de sucesso profissional e intelectual quase inexistentes na vida daqueles que estão marginalizados. É quase proibido sonhar quando você cresce em um meio que todos os caminhos apontam para marginalização ou no máximo subempregos. A ordem é sobreviver. Isso de ocupar uma vaga numa universidade pública, passar em um concurso público é praticamente uma utopia. Se você for negro e pobre então, as coisas ficam um pouquinho mais complicadas. Os brancos, por algum motivo misterioso, ainda têm mais oportunidades de ascensão social no Brasil. Não deve ter nenhuma relação com o racismo. Pelo menos, para quem acredita que o racismo não existe em nosso país.

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